Leandro Haberli*
Paulista formado em comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, o jornalista e escritor Graciliano Rocha conheceu de perto a obra da religiosa católica Irmã Dulce quando foi correspondente da Folha de São Paulo em Salvador. O contato inspirou o lançamento em 23 de setembro, em Salvador, da biografia “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres”. A obra mostra como a futura santa brasileira, cuja beatificação ocorre no dia 13 de outubro, no Vaticano, em Roma, criou do zero uma grande obra assistencial, incluindo um hospital que nunca deixou de atender quem precisava (numa época em que não havia SUS no país). Na entrevista a seguir, concedida por email ao Portal IMPRENSA, Rocha, que hoje é editor de notícias do Buzz Feed, conta outros detalhes da vida de Irmã Dulce, além de resumir como foi o processo jornalístico para a produção do livro.
Crédito:Divulgação

Portal IMPRENSA – O que te inspirou a escrever o livro sobre a Irmã Dulce?
Graciliano Rocha – Conhecia Irmã Dulce superficialmente desde a infância. Nos anos 80, quando era criança, meu conhecimento sobre ela era limitado a “uma freira na Bahia que ajuda os pobres”. Era isso, muito limitado mesmo. No começo de 2011, quando fui correspondente do jornal Folha de S.Paulo em Salvador, tive um contato mais profissional com a história dela porque era o período em que o papa Bento XVI tinha decidido beatificá-la. Como tive de estudar a vida dela e os personagens ligados ao primeiro milagre que o Vaticano atribuiu a ela, meu conhecimento sobre a personagem foi se expandindo. Em maio de 2011, teve uma missa para celebrar a beatificação dela em Salvador. Era um dia que chovia torrencialmente e mais de 70 mil pessoas foram pra lá mesmo assim, e passaram horas esperando a celebração. Havia de tudo: rico, pobre, brancos, afrodescendentes, gente da Bahia, gente que viajou muito para estar ali em caravanas de outros Estados, católicos, evangélicos, gente do candomblé ou sem religião nenhuma. Naquele momento, tive uma demonstração impressionante do tamanho da admiração que a figura de Irmã Dulce inspirava, transcendendo classe social, origem e até mesmo religião. Foi literalmente debaixo de chuva, naquele dia, que pensei pela primeira vez em escrever um livro sobre ela. Na minha ingenuidade, achava que levaria uns dois anos, mas no final a pesquisa e escrita acabaram consumindo oito anos. É basicamente o trabalho de um repórter.
Portal IMPRENSA – Foram oito anos de pesquisa e mais de 100 entrevistas. Como foi esse processo?
Graciliano Rocha – A vida de Irmã Dulce coincidiu com dois marcos do século XX. Ela nasceu em 1914, pouco antes do começo da Primeira Guerra Mundial, e morreu em 1992, depois do fim da União Soviética. Então, a grande questão que eu tinha na cabeça era como as circunstâncias de Salvador, da Bahia e do Brasil influenciaram nas escolhas que a Irmã Dulce teve de fazer ao longo da vida. Esse foi o primeiro desafio: documentar solidamente 77 anos de existência de uma pessoa e isso foi possível graças a documentos espalhados em diversas cidades do Brasil, como Salvador, Rio e Brasília, nos Estados Unidos, para onde ela viajou e obteve financiamento e colaboradores nos anos 1960, e Itália/Vaticano, onde tramitou o processo que resultou agora na canonização. Ao lado disso, entrevistei mais de cem pessoas, algumas delas mais de uma vez, para reconstituir também os aspectos da vida privada, como ela era, o que a irritava, seus prováveis sentimentos em momentos importantes. Uma biografia não pode ser só um inventário da vida pública da pessoa, isso é importante, mas, se estiver limitada a isso, é mais um ensaio que uma biografia. As entrevistas e as cartas dela ajudaram a iluminar também quem era a pessoa por trás das decisões.
Crédito:Divulgação

Portal IMPRENSA – Quais curiosidades sobre ela você encontrou?
Graciliano Rocha – Há muitas coisas. Por exemplo, foi incrível entender como foi que a Maria Rita, que era o nome de batismo da Irmã Dulce, se interessou por futebol quando era criança e isso aconteceu depois de um fato muito trágico, que foi a morte da mãe dela, que se chamava Dulce, em 1921. O pai dela, que ficou viúvo, ficou com as crianças e uma das maneiras que ele encontrou para suprir a perda foi passar mais tempo com as crianças e arranjar programas, principalmente nos finais de semana. Foi assim que o dr. Augusto, que era o dentista mais requisitado de Salvador, começa a levar as crianças todos os finais de semana para assistir às partidas de futebol. Naquela época, o Ypiranga era uma potência, um time que ganhou cinco vezes o Campeonato Baiano na década de 1920, e ganhou o coração da futura Irmã Dulce. É um dado curioso: naquele momento, o futebol baiano nem casa própria tinha. A Fonte Nova só foi construída para abrigar partidas da Copa de 1950 (e não ficou pronta a tempo) e o Bahia, hoje o time das massas na Bahia, ainda nem tinha sido fundado. Como Irmã Dulce, muitos baianos ilustres eram torcedores do Ypiranga. É o caso do Jorge Amado. Depois da construção da Fonte Nova, o Ypiranga começou a definhar cedendo o posto de clube mais popular para o Bahia. Um pequeno exemplo da migração geracional de torcedores: José Veloso e José Gil eram torcedores do Ypiranga, já seus filhos, Caetano e Gilberto, empurram o Bahia.
Portal IMPRENSA – Com que idade ela percebeu sua vocação religiosa?
Graciliano Rocha – A vocação religiosa começa a aparecer aos 13 anos. Uma tia dela, chamada Maria Magdalena, que era muito religiosa, chegou um dia e disse para Maria Rita que ia levá-la para conhecer um outro lado da vida que ela deveria conhecer. Essa tia fazia um trabalho assistencial para o Apostolado da Oração, uma organização de leigos envolvida com caridade. Magdaleninha levou Maria Rita para visitar cortiços no bairro de Brotas e levar alimentos e remédios para crianças carentes. Isso aconteceu por volta de 1927 e a experiência foi profundamente marcante. Dali em diante, o interesse da futura Irmã Dulce por futebol praticamente desapareceu e, aos finais de semana, ela passou a acompanhar a tia nas andanças pelos bairros pobres. Entre os 13 e os 15 anos, ela mandou duas cartas para um convento de Salvador e foi rejeitada por causa da pouca idade. A própria Irmã Dulce costumava situar o começo da vocação religiosa dela aos 15 anos, que é quando ela começa a frequentar a Ordem Terceira, uma organização dos franciscanos destinada a permitir aos leigos uma participação mais ativa. É aí que ela conhece o frei Hildebrando Kruthaup (1902-1986), um religioso alemão, que foi muito influente em Salvador nos anos 1930. Frei Hildebrando foi o confessor dela e foi o responsável por fazer com que ela fosse aceita no Convento do Carmo, em São Cristóvão (SE), em 1933.

Portal IMPRENSA – Quais as principais transformações políticas e sociais retratadas no livro?
Graciliano Rocha – Só a cidade de Salvador viu sua população ser multiplicada por sete durante o período da vida da Irmã Dulce. Em 1920, a cidade tinha pouco mais de 280 mil habitantes e em 1991, já estava perto de 2,1 milhões. É claro que isso moldou as circunstâncias que Irmã Dulce encarou ao longo da sua atuação. A filha mais vistosa do crescimento demográfico com a debilidade econômica foi a famosa favela dos Alagados, que surgiu na segunda metade dos anos 1940. Ali, soteropolitanos que estavam em situação de miséria se juntavam a um contingente crescente de sertanejos deportados pela seca em outras regiões da Bahia para fincar palafitas no leito do mar e ocupar barracos em uma situação totalmente insalubre. Enquanto isso, a economia baiana patinava. A industrialização baiana só começa a acontecer com mais força a partir do final dos anos 1970, com a consolidação do polo petroquímico de Camaçari. A presença de Irmã Dulce na favela de Alagados foi constante e importante entre os anos 1950 e 1970. Ela corria para visitar e dar assistência a uma área que todo o resto de Salvador evitava, não só acolhendo doentes, vacinando crianças ou distribuindo mantimentos, mas às vezes até recebendo crianças órfãs.
Portal IMPRENSA – No livro, você fala sobre a relação de Irmã Dulce com políticos, como o Antonio Carlos Magalhães e o ex-presidente José Sarney. Como era essa relação?
Graciliano Rocha – Tanto ACM quanto Sarney são relacionamentos tardios da vida de Irmã Dulce, quando ela já tinha uma imensa reputação de santa viva dos pobres baianos. O primeiro presidente a quem Irmã Dulce teve acesso foi Eurico Gaspar Dutra (1946-1950), Juracy Magalhães, que foi interventor da Bahia nos anos 1930 e depois governador pelo voto direto nos anos 1950, foi um dos políticos de quem ela se valeu muito. Irmã Dulce e ACM se conheciam da vida inteira. Os pais dos dois eram professores na mesma universidade e as famílias foram vizinhas nos anos 20, mas não eram próximos. ACM nasceu em 1927 e era 13 anos mais novo que Irmã Dulce. Quando ela foi para o convento, ele estava perto de completar 6 anos. Eles só se aproximam por volta de 1968, quando ele era prefeito de Salvador. Depois, quando ele estabelece as bases do império político dele no governo do Estado, ela já era uma pessoa muito influente e respeitada na Bahia. Daí eles tiveram uma relação mais utilitária mesmo. Ela pedia, ACM atendia. Interessante é que embora Irmã Dulce sempre tivesse interpretado com competência a direção do vento político, ela sempre se manteve publicamente como pessoa que queria ser considerada apolítica. Certa vez, perguntaram a ela, já no início dos anos 80, durante o processo de fim da ditadura, como ela se situava politicamente. A resposta dela foi: “Meu partido é o pobre, só não gosto que usem meu nome para política porque isso atrapalha o meu trabalho”. Acho que esta declaração dá uma boa ideia do pragmatismo de Irmã Dulce. Durante a ditadura, dava-se bem com os governantes indicados por militares, enquanto mantinha um médico comunista como seu braço direito. Minha pesquisa indica que Irmã Dulce serviu-se mais dos políticos do que deixou-se ser usada por eles. Ela nunca subiu num palanque. Quanto a Sarney, havia um relacionamento especial. Ela realmente gostava dele. Quando era presidente, Sarney deu a Irmã Dulce o número de um telefone vermelho que tocava direto na mesa dele no Palácio do Planalto, sem passar por assessores e secretárias. Só militares e funcionários graduados de inteligência tinham aquele número. Ele acionou poucas vezes em emergências. Sarney é devoto de Irmã Dulce a ponto de andar com uma medalhinha dela no bolso.
Portal IMPRENSA – Você conta detalhes dos milagres que resultaram na sua canonização. Você entrevistou algum agraciado pelos milagres de Irmã Dulce?
Graciliano Rocha – Conversei com várias pessoas que alegam terem sido beneficiados por graças de Irmã Dulce, incluindo Cláudia Cristiane, a mulher que foi desenganada pelos médicos após uma hemorragia brutal que se seguiu a um parto em Sergipe, e José Maurício Bragança, músico baiano que atribui a sua fé o fato de ter voltado a enxergar depois de 14 anos cego. São casos muito interessantes para os quais a ciência não encontrou uma explicação adequada e que foram considerados curas milagrosas pelo Vaticano. Acreditar que milagres existem ou não depende inteiramente de fé individual, mas estes dois casos são muito impressionantes porque estas pessoas reverteram quadros altamente improváveis.
Portal IMPRENSA – Na obra, você reconstitui encontros da freira com Madre Teresa de Calcutá e com o papa João Paulo II
Graciliano Rocha – No livro, conto em detalhes o que Irmã Dulce e Madre Teresa tinham em comum, mas principalmente o que as diferenciava. Irmã Dulce não era uma mera versão brasileira de Madre Teresa. Foi mais do que isso: Irmã Dulce levava muito a sério a importância de diagnósticos precisos para a cura de pacientes. Irmã Dulce também chegou a oferecer seu hospital a Madre Teresa, mas ela recusou. Isso aconteceu em 1979. O livro também reconstitui os dois encontros de Irmã Dulce com João Paulo II, em 1980 e 1991. O primeiro foi um encontro marcado por uma controvérsia com autoridades locais da Igreja, que tentaram escantear um pouco Irmã Dulce. Mas isso foi revertido por causa da relação amistosa que Irmã Dulce tinha com os poderosos e pela imensa aclamação popular que ela recebeu, diante do papa, numa grande missa campal que ocorreu em Salvador.
Portal IMPRENSA – Como era Irmã Dulce além da religião?
Graciliano Rocha – Na vida pública, foi uma empreendedora talentosa, que não temia tomar riscos se achasse que valia a pena e como boa administradora conseguiu criar do nada uma rede de assistência social muito abrangente num tempo em que o Estado brasileiro não garantia a saúde como um direito fundamental de qualquer cidadão. Às vezes a gente se esquece, mas o Sistema Único de Saúde é uma criação recente, veio após a Constituição de 1988. Antes disso, as pessoas precisavam ter carteira assinada para serem atendidas em hospitais públicos – o que obviamente deixava muita gente de fora em Salvador. Por mais superlotado que estivesse, o hospital dela nunca bateu a porta na cara de ninguém necessitado, mesmo que isso às vezes causasse fricções na relação de Irmã Dulce com seus médicos. Ela viveu num tempo em que o papel destinado às mulheres era o de ser subalterna, então, em certo sentido antecipou em muitas décadas a chegada das mulheres às posições de poder e influência. Pra mim,.