Novo consórcio internacional de jornalismo colaborativo foca em profissionais executados pelos cartéis mexicanos

Foto: Retrato de Regina Martínez/ Divulgação

Um novo consórcio internacional de jornalismo investigativo elegeu a morte de jornalistas que cobriam os cartéis mexicanos como pauta. O objetivo é concluir as reportagens interrompidas pelas execuções. Em sua primeira apuração, o The Cartel Project revelou, no dia 06.dez.2020, o desfecho da história da repórter mexicana Regina Martínez, assassinada em 28.abr.2012, em seu apartamento na cidade de Xalapa, capital do estado mexicano de Veracruz.

Para descobrir os mandantes do crime, 60 repórteres de 18 países se debruçaram sobre o caso por 10 meses, sob a coordenação do Forbbiden Stories, rede dedicada à cobertura de jornalistas assassinados em todo o mundo. A história de Martínez é a primeira de uma série a ser publicada simultaneamente em 25 jornais e revistas envolvidos no consórcio colaborativo. No México, 119 jornalistas morreram desde 2000, de acordo com o CPJ (Comitê Para a Proteção dos Jornalistas). A iniciativa pretende espalhar a seguinte mensagem: “Matar o mensageiro não matará a mensagem”.

::Saiba o que e quem Regina Martínez investigava::

“Não vale a pena matar um jornalista para impedir o seu trabalho, porque vamos reunir dezenas de repórteres de projeção internacional. E eles farão ainda mais barulho sobre o caso que era investigado”, disse à Abraji Arthur Bouvart, repórter do Forbidden Stories, responsável por coordenar a investigação sobre o assassinato da mexicana. “Após a publicação da primeira matéria, dois jornalistas locais nos procuraram para relatar ameaças feitas pelo governo de Fidel Herrera, que comandava a província de Veracruz quando Martínez foi morta”.

Para Bouvart, a investigação coletiva é a chave para trazer à tona fatos inéditos sobre o narcotráfico. “Os cartéis mexicanos funcionam como multinacionais. Os produtores de drogas sintéticas compram matéria-prima na Índia, na China, e vendem tanto na América do Norte, quanto na Europa. Daí a importância de termos repórteres de 18 países e três continentes.”

Ele conta, porém, que o Projeto Cartel é uma das primeiras iniciativas desenvolvidas pela Forbidden Stories na América Latina, onde a organização começa a encontrar seus primeiros parceiros. Em 2018, a rede de jornalistas repercutiu o assassinato de três equatorianos que trabalhavam no jornal El Comercio, na fronteira com a Colômbia. Mas a articulação tinha um escopo menor.

O Nieman Lab descreve o Projeto Cartel como a “maior e mais recente colaboração para investigações póstumas”. A lista completa de empresas participantes inclui: Le Monde (França), France TV (França), Radio France (França), The Star (Malásia), The Washington Post (USA), The Guardian (Reino Unido), Proceso (México), OCCRP (Organização transnacional), Le Soir (Bélgica), Knack (Bélgica), South China Morning Post (China), Süddeutsche Zeitung (Alemanha), WDR (Alemanha), NDR (Alemanha), Die Zeit (Alemanha), Lede (Índia), Haaretz (Israel), TheMarker (Israel), IRPI (Itália), Daraj (Turquia), Proceso (México), El Pais (Espanha), Prensa (Espanha), Expresso (Portugal), Radio Télévision Suisse (Suíça), SVT (Suíça), De Volkskrant (Holanda). O El País Brasil traduz as matérias para o português brasileiro a partir da versão espanhola.

O Forbidden Stories declara estar aberto a parcerias e agrega colaboradores a cada projeto. O The Cartel Project foi precedido pelas iniciativas Daphne, que deu seguimento ao trabalho da jornalista investigativa maltesa Daphne Caruana Galizia, e Green Blood, sobre as represálias a repórteres ambientais na Índia, Tanzânia e Guatemala.

Uma das apurações envolveu a jornalista indiana Jagendra Singh, ameaçada ao produzir uma pauta sobre mineração em seu país, em 2018. Trabalhamos um ano para concluir essa investigação. Agora ela está investigando a presença dos cartéis mexicanos na Índia”, conta.

Marcelo Beraba, cofundador e atual conselheiro da Abraji, sublinha a relevância de projetos jornalísticos colaborativos. “São iniciativas que potencializam a nossa capacidade de investigação e nos permitem alcançar algumas áreas que apenas um jornalista ou uma empresa dificilmente conseguiria.”

Para Bouvart, o fato de contar com repórteres de diversas origens contribui para uma apuração que contempla as diferentes perspectivas dos fatos. “Precisamos de todas as habilidades possíveis para avançar nas investigações. Considerando, é claro, a segurança de nossa equipe”.

Ao concluir a investigação, o The Cartel Project descobriu:

  • Antes de ser assassinada, Martínez e um grupo de jornalistas locais foram espionados por uma unidade comandada pelo ministro da Segurança Pública de Veracruz.
  • As centenas de documentos vazados indicam os familiares, os colegas de trabalho, as inclinações políticas e até as preferências sexuais dos profissionais de imprensa sob monitoramento.
  • Quando foi morta, a jornalista preparava um grande furo de reportagem sobre a ligação de autoridades locais com o narcotráfico.
  • De acordo com o promotor que comandou a investigação federal sobre o crime, o inquérito estadual foi boicotado por agentes de Veracruz.
  • Uma perícia técnica encontrou evidências de ação coordenada para promover, com auxílio de bots que divulgavam matérias de veículos ligados ao governo local, a narrativa de que Martínez foi vítima de um assalto frustrado.

Não à toa o México foi escolhido como o ponto de partida para esse mutirão de veículos. Só em novembro de 2020, três jornalistas mexicanos foram assassinados a tiros, num espaço de 10 dias. Segundo o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, 90% dos crimes não são esclarecidos. Outras duas reportagens sobre o país começaram a ser publicadas nos veículos do consórcio: como o México criou uma unidade de espionagem para monitorar repórteres e como os traficantes mexicanos ​​passaram a dominar o comércio de um poderoso opioide sintético na Índia.

The Cartel Project se soma a outros consórcios transnacionais organizados nos últimos anos, como Panamá Papers, Paradise Papers e Luanda Leaks e FinCEN Files que priorizaram o trabalho em larga escala com grande bases de dados e documentos com foco em temas mais amplos como corrupção.