Marta Teixeira | 17/12/2018 11:4
Uma das mais atuantes e premiadas iniciativas de jornalismo investigativo do Brasil, a Agência Pública vai se dedicar exclusivamente à produção de reportagens pelos próximos quatro anos. Com isso, seu projeto de fact-checking, o Truco, será interrompido. Crédito:José Cícero da Silva/Agência Pública

A decisão foi anunciada na semana passada. A eleição de Jair Bolsonaro (PSL) para a presidência da República e os muitos casos de ataques e ameaças a integrantes de movimentos ligados a direitos humanos por seus apoiadores foram determinantes para a mudança.
“Nunca houve um presidente que atacasse as questões dos direitos humanos como narrativa fundamental. Estaremos atentos às ações e ao discurso desse governo e vamos focar em jornalismo investigativo”, explica Natalia Viana, co-fundadora e co-diretora da Pública ao Portal IMPRENSA.
A cobertura em Brasília será reforçada e terá à frente o repórter Vasconcelos Quadros. Com passagens pelas redações dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil e pela revista IstoÉ, entre outros, o profissional será um trunfo importante para o trabalho da equipe. “Vasconcelos Quadros conhece Brasília profundamente e vai trazer muita informação relevante”, ressalta Natalia.
A ênfase nas reportagens investigativas segue a essência da proposta da Pública, criada em 2011 para produzir conteúdo sob o ponto de vista do interesse público e da defesa dos direitos humanos. “Tudo o que a gente sempre fez, vamos continuar fazendo. Não é jornalismo ativista, mas temos um tema, que é direitos humanos. Para quem cobre esse tema, esse momento é especial e precisa-se trabalhar considerando isso”, disse, citando Marty Baron, editor executivo do Washington Post: “We’re not at war, we’re at work” (Não estamos em guerra, estamos trabalhando).
O acompanhamento das ações governamentais sempre marcou o trabalho da Pública. Durante os governos do PT, a Agência publicou diversas matérias sobre infrações de direitos humanos ligadas às obras da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos 2016, por exemplo.
“Ninguém abre mão da neutralidade”, destacou Natalia. “Alguns comentaristas de direita falaram que a Agência Pública começa a fazer oposição. Não existe isso. A gente só faz investigação. Não é oposição. Não fizemos e não faremos. O que estamos falando é que estaremos bem atentos.”
Acostumada aos desafios de fazer jornalismo investigativo no Brasil, Natalia acredita que os profissionais da área serão bastante exigidos nos próximos anos. “Não sei se vai ser mais difícil, sempre foi. Acho que vai ter muito trabalho para o jornalismo investigativo.”
A última campanha eleitoral deu uma mostra do que os jornalistas terão de enfrentar. O assédio virtual orquestrado por turbas agressivas deve continuar, alerta Natália, mas não pode entrar para a normalidade. “Cabe ao jornalista não se amedrontar. Dizer o que está acontecendo. Ser claro e transparente no que está fazendo. Nós trabalhamos com direitos humanos e sabemos que eles estão sob ataque, portanto, o papel que sempre tivemos é ainda mais relevante. Os jornalistas precisarão estar unidos, cientes que esse tipo de ataque virá e terão de reagir.”
Mas assim como oferecem desafios, ela crê que os próximos anos também serão uma oportunidade para a classe jornalística se fortalecer. “Ao mesmo tempo que é um período problemático, é muito rico para alianças, para mostrarmos qual é a importância do jornalismo.”
A homenagem feita pela revista Time demonstrou essa valorização. A publicação outorgou o título de Pessoa do Ano 2018 a jornalistas engajados com o trabalho investigativo. Entre as citadas, estava a repórter Patrícia Campos Mello autora de reportagem revelando esquema ilegal de empresários que pagaram pelo envio de mensagens pelo WhatsApp para prejudicar o PT durante as eleições.
“Não é só olhar o Brasil. Esse prêmio à jornalistas, à carreira jornalística, mostra que é o ano do jornalismo profissional, bem feito, com critério, com evidências, com muito trabalho, com dados e com entrevistas. Acho que isso também vai ser uma força para os jornalistas”, explicou Natalia.
Fact-checking
A Pública foi pioneira no trabalho de fact-checking no país. O projeto Truco começou em 2014, com a cobertura eleitoral. Foi ativado em outros momentos chaves, como a eleição de 2016 e para acompanhar as atividades do Congresso, e passou a ser permanente no ano passado. O projeto se tornou uma das referências desse tipo de atividade na América Latina.
Agora, com a multiplicação de iniciativas de checagem de dados no país, a Pública considera que operacionalmente o ideal é focar nas reportagens. “Estamos aqui para fazer o que não está sendo feito. O fact-checking já virou uma coisa tão bem sucedida que todos os grandes jornais estão fazendo, não tem porque continuarmos fazendo. Faz mais sentido focarmos no jornalismo de direitos humanos, que já está sob ataque, e no qual somos super reconhecidos”, destacou Natalia.
A equipe responsável pelo fact-checking permanece na empresa, realocada para reportagens. O primeiro fruto dessas mudanças é um projeto sobre o uso de agrotóxicos pela indústria do agronegócio. Em parceria com a organização Repórter Brasil, jornalistas viajarão pelo país durante dois anos investigando a situação.