Violência contra a imprensa é herança da ditadura, mas reflete também crise do modelo de jornalismo, dizem pesquisadores

Análises do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo sobre as agressões a jornalistas nas últimas décadas no Brasil mostram que a violência contra profissionais da imprensa é uma herança da ditadura militar, somada a novos fatores apresentados mais recentemente, como as mídias sociais.

Crédito: Agência Brasil

Em entrevista à Rádio USP, os professores Daniela Osvald Ramos e Vitor Blotta, ambos pesquisadores do Núcleo, explicam os motivos do crescente aumento de casos de violação à liberdade de imprensa, incentivado inclusive pelo governo.

Segundo Daniela Ramos, as agressões a jornalistas, especialmente em lugares mais remotos, são resquícios da ditadura de 1964 a 1985, e ocorrem para retaliar e intimidar profissionais que denunciam abusos de poderosos locais.

“Durante os anos 80, 90 e 2000, continuaram a acontecer assassinatos e retaliações a jornalistas de cidades mais afastadas, que são independes ou que não têm uma empresa por trás deles, com setores jurídicos, como nos grandes centros. Nas pequenas cidades, existe uma maior identificação de jornalistas que trabalham e denunciam abusos e logo sofrem retaliação, e isso está muito relacionado à cobertura da corrupção local ou da ocupação de terras, que são problemas históricos no país”, avalia.

Mais recentemente, as agressões ficaram generalizadas, inclusive nos grandes centros, motivada, segundo o pesquisador Vitor Blotta, pelos ataques à imprensa por parte do governo nos últimos dois anos, como mostra relatório da organização Artigo 19.

“O último relatório mostra mais de 450 violações contra a liberdade de imprensa e contra direitos de profissionais de jornalismo praticados pela família Bolsonaro ou agentes do governo federal. O número médio dos anos anteriores era na casa das 100 violações. Isso mostra muito que essa administração é declaradamente contrária à liberdade de imprensa e à atuação política do jornalismo. Para eles, o jornalismo teria que ser elogioso. Eles trabalham com a alógica de ‘ou está me batendo ou está me elogiando’”, diz.

Jornadas de junho em 2013

Outro fenômeno identificado pelos pesquisadores foi a mudança de comportamento da sociedade em relação aos jornalistas a partir dos protestos que ficaram conhecidos como Jornadas de junho, no ano de 2013. A violência passou a ser direcionada a grandes grupos de comunicação e partindo de cidadãos comuns.

“Começou a aparecer essa violência contra jornalistas famosos e grupos famosos. Eram ataques difusos de organizações políticas diversas, tanto de quem se colocava mais a esquerda com o discurso de mídia golpista, quanto da direita, que diz que a mídia não fala a verdade ou inventa”, ressalta Ramos.

A partir de 2017 as agressões deram um salto, como mostra relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), que revelou que em 2017 foi registrado aumentou de 36%, enquanto em 2019 o índice aumento 54%.

As intimidações a profissionais da imprensa na cobertura de protestos por parte da polícia e de manifestantes também aumentou. Para Daniela Ramos, há ainda uma parcela de responsabilidade do jornalismo, que por muito tempo difundiu um discurso hegemônico que privilegiava alguns grupos e outros não.

Paralelamente, ocorreu a disseminação dos discursos nas redes sociais e a crise do jornalismo, que já não se sustenta pelos modelos de negócio clássicos, segundo explica a professora.

“Essa organização paralela visa a destruir a hegemonia do discurso que historicamente o jornalismo construiu como voz legítima, e também tem origem numa insatisfação geral de como o jornalismo vinha sendo feito, hegemônico para uns grupos e outros não. A disseminação de desinformação está ligada também à deslegitimação da prática jornalística como voz privilegiada na esfera pública”, afirma.